DeepSeek, IA e a nova ordem na gestão de ativos chinesa

Como a integração da Inteligência Artificial pode reconfigurar o setor financeiro, acelerar a transição algorítmica e desafiar o domínio ocidental na tecnologia de investimento.
14 de março, 2025

A emergência da IA como força transformadora no setor financeiro não é nova. Mas o caso chinês — impulsionado pela atuação do fundo High-Flyer e pelo impacto disruptivo do modelo DeepSeek — marca uma viragem qualitativa. Pela primeira vez, a capacidade de inovação tecnológica no setor da gestão de ativos está a deslocar-se do Ocidente para um ecossistema asiático com ambições sistemáticas e apoio institucional explícito.

Nesta analise, aprofundamos os sinais dessa transformação e as implicações que poderá ter para o equilíbrio global dos mercados financeiros.

1. Disrupção estrutural: o fim da gestão como a conhecíamos

O ciclo tradicional da gestão de ativos está a ser desmantelado. O modelo baseado em análise fundamentalista, execução discrecional e tomada de decisão humana está a perder tração frente à abordagem sistemática, baseada em algoritmos e automação total. A grande mudança não está na técnica, mas na escala.

Fundos como High-Flyer e Baiont Quant não estão apenas a usar IA para aumentar eficiência — estão a substituir funções centrais, eliminando camadas hierárquicas inteiras e redefinindo o valor das equipas. A gestão de ativos torna-se uma função computacional, alimentada por dados e calibrada por modelos, não por intuição.

DeepSeek foi o ponto de inflexão. Ao reduzir drasticamente os custos de acesso à IA avançada, a tecnologia deixou de ser uma vantagem dos grandes fundos tecnológicos e passou a ser uma base comum para toda a indústria. Com isso, o diferencial competitivo desloca-se do “quem tem acesso à IA” para “quem consegue treinar melhor os seus agentes para extrair alpha”. A barreira agora é o talento computacional — não a escala de AUM (Assets Under Management).

2. Transição algorítmica e reconfiguração da cadeia de valor

A entrada de IA na gestão de ativos não se limita ao front office. Ela reconfigura todas as áreas:

  • Research: Agentes generativos assumem tarefas repetitivas dos analistas.
  • Compliance: Modelos supervisionados identificam padrões de risco regulatório em tempo real.
  • Client reporting: Relatórios personalizados gerados automaticamente.
  • Portfolio construction: Otimização contínua baseada em inputs em tempo real, sem necessidade de intervenção humana.

Na prática, um fundo com uma equipa pequena, mas com forte capacidade de machine learning e acesso a GPUs, pode superar estruturas tradicionais com dezenas de gestores. O valor está na arquitetura computacional, não na estrutura organizacional.

É neste contexto que se intensifica a procura por perfis híbridos: engenheiros com formação financeira ou gestores com fluência em machine learning. A batalha por talento já começou. Wizard Quant, Mingshi e UBI Quant estão a construir laboratórios de IA internos para atrair perfis de topo — um sinal claro da mudança de foco: menos MBA, mais código.

3. Geopolítica do alpha: o desafio ao domínio ocidental

A disrupção em curso tem também uma leitura geoestratégica. DeepSeek não é apenas um avanço técnico — é uma demonstração de soberania tecnológica. Até aqui, os modelos fundacionais de IA eram liderados por entidades norte-americanas (OpenAI, Anthropic, Meta). Com o DeepSeek, a China mostra que consegue competir ao nível dos LLMs e aplicá-los com eficácia em setores críticos da economia.

Esta capacidade tem consequências diretas:

  • Soberania tecnológica no setor financeiro: A dependência de modelos estrangeiros é reduzida.
  • Autonomia computacional: Apoios estatais como o fundo de Shenzhen para infraestrutura de IA apontam para uma estratégia nacional de independência tecnológica.
  • Capilarização industrial: Ao contrário do Ocidente, onde IA permanece concentrada em grandes techs, na China está a ser rapidamente disseminada para o tecido financeiro mais amplo — fundos médios, gestoras de retalho, etc.

Neste novo equilíbrio, os EUA podem manter a liderança conceptual, mas a China está a construir liderança aplicada. E isso pode ser mais disruptivo para o setor global de gestão de ativos.

Perspetivas futuras: concentração de poder, volatilidade estratégica e oportunidades emergentes

Nos próximos anos, a tendência deverá acentuar-se. Três riscos e oportunidades emergem claramente:

  • Concentração algorítmica: A IA pode agravar a concentração de alpha nos poucos que dominam os dados e os modelos. Os restantes tornam-se seguidores de mercado, sujeitos a maior volatilidade.
  • Volatilidade sistémica: A automação massiva dos fluxos de trading, sem supervisão humana direta, poderá amplificar efeitos de feedback nos mercados, gerando novos tipos de risco sistémico.
  • Aceleração das fronteiras da inovação: As empresas que conseguirem integrar IA não apenas no investimento, mas em toda a sua cadeia de valor (relação com clientes, governança, compliance) poderão construir modelos operacionais altamente escaláveis e resilientes.

A adoção da IA no setor financeiro chinês é um case study sobre adaptação estrutural em velocidade acelerada. A lição para o Ocidente não é apenas sobre tecnologia. É sobre flexibilidade organizacional, capacidade de execução e vontade política.

O que está em jogo não é apenas a eficiência de mercado — é a arquitetura futura da gestão financeira global.

Com informação Reuters